03 dezembro 2006

O quadro

Enquanto Rebeca assiste ao noticiário, nota o repórter falando de forma diferente do habitual ao referir-se à morte "dele". Parecia tremer.
Lembrou-se que "ele" não existia da forma como o repórter falava, ou da forma como as pessoas viram "seu" corpo no banheiro e no necrotério.

O delegado a deixara nervosa. O escrivão a acalmou com uma cantada barata. Não que fosse vulgar, mas lembrou-se de que no mundo tudo estava bem - "Como existe gente ridícula neste universo!".

Após o noticiário, pensou se deveria ligar para o repórter ou se deveria admirar "sua" obra. Optou pelo segundo.

Levantou-se do sofá (ah, o sofá), caminhou à cozinha. Deu um tapa no gato que insistia em dormir sobre a mesa:
-Gato desgraçado. Nem com "ele" morto você me dá sossego!

Abriu a porta e desceu as escadas. Acendeu as luzes do porão e viu a obra. O quadro a mantinha em estado de êxtase. Rebeca passava horas admirando os traços, as cores. Não, aquilo não era comum. Não era humano. Impossível.

O telefone tocou, e Rebeca correu para alcançá-lo na cozinha. Mais uma vez, o gato sobre a mesa. Desta vez não ligou. Ao atender, ouviu ruídos estranhos. Um frio subiu por sua espinha, e Rebeca encolheu-se na parede, cuidando para que ninguém a atacasse por trás - instinto de defesa em alerta máximo.

O telefone foi desligado. Ela discou, descoordenadamente, para o delegado.

Delegado
-O que você quer? Não sabe que não conversamos com suspeitos de assassinato? Ha ha ha.

Rebeca
Vá à merda. Preciso de você aqui. Algo está para acontecer, sinto isso.

Delegado
Vá dormir, acha que tenho 12 anos? Aliás, você bem sabe que não tenho 12 anos, não é?

Rebeca
Não estou brincando. Não fui totalmente sincera na delegacia. Existe algo que preciso contar, mas sei que não devia. Talvez seja minha fraqueza que causa essa sensação de medo. Pânico, medo não.

Delegado
Filha de uma puta, agora está me escondendo coisas?

Rebeca
Seja mais educado e terá tudo que quer de mim. Você é um cavalo, não reconheceria algo "dele" nem se estivesse na sua cara. Faça um favor p/ você mesmo e morra. Babaca inútil. E trate de dar um jeito naquele escrivão de merda. Já ouvi cantadas melhores de presidiários sem primeiro grau. E ainda dizem que é difícil ser policial. Rá. Difícil é ser bom policial. Cavalgaduras como você vemos às dúzias.

Delegado
Hahaha. Quer ser algemada hoje é? Respeite minha autoridade. Só para constar, "ele" me deixou a resposta sobre o quadro. Não que lhe interesse, pois você tem esse maldito quadro e só vê o que quer. O mais óbvio, o essencial lhe passa a quilômetros. Incompetência feminina. Falta de lógica. Mas não se preocupe. Vou p/ aí. Se não for nada demais, aproveitamos e fazemos uma fogueira com o quadro. Era o objetivo inicial mesmo. Queimar, queimar. Enquanto sinto seu corpo queimando. Poético, não?

Rebeca
Vá à merda. E a lista de ligações?

Delegado
Já disse que não falamos com suspeitos sobre investigações. Está curiosa, é? Bom, dependendo do agrado que você me fizer, podemos pensar a respeito. Só para começar a matar sua curiosidade, a lista já chegou à minha mesa. Você nem imagina a surpresa que eu tive ao lê-la. Rá, não imagina mesmo, pois só vai saber junto com todos os outros.

Rebeca
Imbecil. Não quero saber dessa porcaria. Apenas esteja aqui o mais rápido possível.

Desligou. A sensação de medo aumentava. Conversar com o delegado não ajudou. De que respostas falava? O que era o essencial? Sentiu raiva "dele", pois acreditava saber de tudo. Mas lembrou-se de que era apenas parte de algo grandioso. Ninguém sabe tudo. Nem "ele" sabia tudo. Mas ele fez o quadro. Ou disse que fez.

Desceu as escadas. O quadro não estava lá.

Rebeca (chorando)
-Foi o repórter. O REPÓRTER!

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