Escrevi o texto que segue há 7 anos. Ele falava sobre a minha vida de então, relembrando o passado. O nome do texto é "Há 10 anos". Quando tiver um tempo, vou escrever sua continuação.
E estou andando pela casa em que cresci.
E, no início, não quero nada, só pegar meu violão, e ir embora p/ minha casa.
Então acho alguns cadernos empoeirados. São cadernos do meu primário. De 1990 a 1993. E então lembranças começam a tomar meu pensamento, enquanto passo os olhos pelas folhas empoeiradas, preenchidas por letra infantil, com problemas matemáticos, ou recados.
Relembro dos amigos que nunca mais vi, do primeiro álbum de figurinhas completo, que perdi na mudança de casa, das comemorações, ou feiras de ciências com explicações agora simples, mas que eram complicadíssimas naquele momento.
Valores de mensalidades expressos em milhões de cruzeiros, depois milhares de cruzeiros reais.
Até chegar no recado sobre o luto pela morte do cantor Jessé, pai do aluno David, estudante da minha sala. Na verdade, David foi meu primeiro "melhor amigo". Mas após a morte de seu pai, mudou de escola, e nunca mais tive notícia. Suspeito que tenha sido a primeira grande decepção que tive, pelo menos, que lembro.
Então me vem o pensamento sobre o quanto seria bom reunir toda uma classe de mais de 10 anos atrás. Não consigo imaginar a gama de caminhos que cada um pôde escolher p/ seguir. Lembrei também do meu primeiro amor, que também foi meu primeiro fora. Um bilhetinho pedindo a menina (Thaís) em namoro, e a resposta que eu teria a resposta somente no dia seguinte. E a resposta foi "não". Graças a uma amiga da Thaís, que não gostava de mim. Acho graça de como as mulheres começam a fazer esse tipo de coligação tão cedo. Por onde será que anda a Thaís?
E me ocorre que estou com medo. Nunca notei como o tempo passa depressa. Sempre que se falava em "10 anos atrás", eu não tinha a dimensão correta desse tempo, pois não me lembrava da época. Quando tinha 18 anos, 10 anos antes eu teria 8, e não lembraria nada que acontecera naquela época. Agora não. Eu lembro das coisas que me aconteceram há 10 anos.
Tudo vêm à mente com muita facilidade, desde a reforma da casa, até a vinda do Rex, o cachorro que ainda está vivo, mas infelizmente, está velho, e não dura muito mais. Mais uma coisa que só agora vim perceber. Fazia uns 3 ou 4 anos que não via o Rex. Nunca me ocorreu que ele ficaria velho e morreria. Nas minhas lembranças não lembro de nenhum momento que pensei sobre isso, e brinquei "só mais 5 minutos" com ele. E agora não tenho tanto tempo assim, e ele não consegue mais brincar como antes. Não tem o mesmo fôlego p/ pular e correr. E é assim que estou me vendo, sentado na escada, olhando o Rex, e o prédio que agora esconde a bela vista que tinha das montanhas, e que tapa o sol que mantinha as árvores do meu quintal vivas, chorando feito uma criança que perdeu seu brinquedo. Mais um minuto próximo do fim. No caso, o brinquedo que perdi foi o tempo. Agora não dá mais p/ dormir com a janela do quarto aberta, p/ acordar cedinho, e sem o barulho da janela abrindo, poder observar as maritacas que comiam goiaba numa das goiabeiras do meu quintal. Ou correr com um pedaço de pão, que servia como isca p/ o meu cachorro! Agora o que restou foi uma sombra, uma árvore morta, e um velho cachorro, numa casa velha, que não parece mais a casa onde crianças corriam, e festas aconteciam.
E eu continuo lembrando dos amigos do bairro. Da Carolina, Camila e Cibele, as minhas primeiras amigas, que não vejo há mais de 10 anos. Nunca mais tive coragem de tocar aquela campainha. Nem sei se elas me reconheceriam. E continuo, e lembro das brincadeiras de esconde-esconde (que eram muito emocionantes, já que minha casa possuía vários esconderijos muito bons).
Agora me levanto, e sigo até o portão, e no caminho passo pelo corredor, que me dava medo. Agora passo por ele sem nem olhar p/ trás. Passo pelo jardim, que foi estrategicamente diminuído pelo meu pai, p/ caber mais um carro na garagem. E em algum lugar desse jardim está enterrado meu outro cachorro, que morreu há quase 10 anos, numa briga com o Rex. A natureza é feroz. Um dia, você é forte, e enfrenta qualquer coisa. O tempo passa, e o que você havia enfrentado está maior, e mais forte que você, e te vence. E olho p/ o muro que há 10 anos, eu tinha medo de subir, mas que mesmo assim, ia buscar o pipa que caiu no telhado. Entro no meu carro, e é meu subconsciente que se preocupa com a direção. O consciente está ocupado com lembranças. E pelo caminho para casa, passo pelo meu antigo colégio, que me traz mais lembranças, enquanto as lágrimas escorrem.
Dia 17 fez 4 anos que conheci uma menina que mudou o rumo da minha vida, mas não pôde continuar seguindo comigo. Ela seguiu o caminho dela, e agora eu sigo o meu. Incrível como parece ontem que eu a conheci, e tanta coisa mudou desde então.
E depois de alguns minutos, quando as lembranças se acalmam, eu consigo concluir que o que sou hoje, sou graças à esse passado que me entristece. Desde a teimosia, à facilidade de integração, que foram moldadas durante a adolescência, período que, ao que parece, está me trazendo mais confusões e dúvidas agora, do que em seu ápice.
E choro mais uma vez, escrevendo este texto, por ter lembrado de tudo novamente.
Cada livro que eu li, programa que eu assisti, brincadeira que joguei, agora me olham e cobram o resultado de terem passado pela minha vida. Tornei-me bom, ou mau? Ou simplesmente, tornei-me adulto - bem e mal juntos, compartilhando esta pessoa, que, como cada ser humano, é um universo indecifrável e sem tamanho?
E novamente me lembro que devo seguir e conquistar cada vez mais, mas não posso esquecer de viver esse tempo, pois daqui p/ diante, em qualquer tempo da minha vida, eu sempre vou lembrar do que aconteceu 10 anos atrás. E não posso correr o risco de chorar novamente daqui a 10 anos.
08 maio 2011
11 janeiro 2011
Repensar os animais - Paola Cavalieri
Pela primera vez, vou publicar um texto que não é meu. Eu gostaria muito que fosse. Segue.
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Nos anos mais recentes, os animais não-humanos têm estado no centro de um intenso debate filosófico. Mais concretamente, muitos autores criticaram a moral tradicional, defendendo que o modo como nós tratamos os membros de outras espécies é eticamente indefensável. Usualmente, usamos animais como meios para os nossos fins – na verdade, tratamo-los de maneiras que consideraríamos profundamente imorais se fossem destinadas aos seres humanos. Apesar dos animais serem “pacientes morais” – isto é, seres cujo tratamento pode estar sujeito a uma avaliação moral –, o seu estatuto é infinitamente inferior ao nosso. Será que esta duplicidade de padrões está garantida? E, se está, em que base assenta?
Apesar de não ser completamente ignorada pelos filósofos, a primeira justificação oferecida é forte e está bem espalhada a nível da sociedade, sobretudo devido à sua simplicidade. À questão a respeito do que nos separa dos outros animais, a resposta é: o facto de eles não serem humanos. Nesta perspectiva, aquilo que é significativamente diferente é a posse, ou falta, de um genótipo característico da espécie Homo Sapiens. Será que esta é uma boa resposta? Não. Aqueles que apelam ao facto de se pertencer a uma espécie trabalham dentro do quadro do paradigma do igualitarismo entre humanos. E é justamente a linha de raciocínio que sustenta a igualdade entre humanos que, ao rejeitar a relevância moral da pertença a uma raça ou a um sexo, implica também a rejeição da ideia de que a pertença a uma determinada espécie seja em si mesma instituinte de uma diferença significativa quanto ao estatuto moral de um ser. Se alguém afirma que as características biológicas como a raça e o sexo não têm relevância ética, como pode então atribuir relevância a uma outra característica biológica, como a pertença a uma espécie? As perspectivas morais que aceitam o “especismo” – a ideia que defende a atribuição aos membros da nossa própria espécie um estatuto moral especial - ao mesmo tempo que rejeitam o racismo e o sexismo são internamente inconsistentes.
O especismo absoluto dificilmente poderá ser plausível. Mas há maneiras mais sofisticadas de defender a nossa presente duplicidade de padrões às quais os defensores teóricos do status quo tendem a recorrer. Para a maioria dos filósofos, não é a pertença a uma determinada espécie, mas a racionalidade que tem uma relevância central. Podemos admitir, a bem do argumento, a presunção (questionável) de que a racionalidade é um privilégio humano para nos podermos concentrar na importância moral da racionalidade.
Um argumento muito conhecido, que remonta pelo menos a Kant, depende da ideia de que os seres racionais são a condição para a existência da moralidade. As normas éticas dirigem-se a um tipo concreto de seres – os agentes morais. Os agentes morais são os seres racionais cujo comportamento pode ser submetido à avaliação moral. Se os agentes morais não existissem, não poderia haver normas éticas. Consequentemente, a ética é essencialmente um assunto que diz respeito aos agentes morais. Não obstante a sua plausibilidade superficial, este argumento baseia-se num mal-entendido. A sua conclusão consegue-se pela passagem da ideia de que apenas os seres racionais podem ser moralmente responsáveis para a ideia de que apenas o que é feito a seres racionais tem importância moral (total). Mas o como, isto é, a possibilidade da moralidade, é uma coisa; o quê, isto é, o objectivo da moralidade, é outra. Reconhecer que os agentes morais tornam a moralidade possível não significa que eles sejam os únicos pacientes morais (totais). Podemos ver que na verdade não defendemos esta perspectiva se atendermos ao facto de não pensarmos que as crianças pequenas, ou os indivíduos intelectualmente diminuídos, por não poderem agir de acordo com normas éticas, não devem ter um estatuto moral especial.
Há uma segunda versão mais radicalmente exclusivista do apelo à racionalidade, e que atribui um valor instrumental a esta característica. A noção central é que a introdução de um ser ou de um grupo de seres na comunidade moral pode ser justificada através de um tipo de acordo. Dado que para cumprir o acordo é preciso ser-se racional, o acordo incluirá apenas seres racionais, que serão os únicos pacientes morais. À luz desta ideia, as normais morais são as normas que indivíduos racionais com interesses próprios aceitariam cumprir, mediante a condição dos outros procederem exactamente da mesma maneira. Se o argumento anterior sugere a posição contemporânea de John Rawls, também lhe reconhecemos a ideia das vantagens mútuas do contratualismo de origem Hobbesiana. Mas esta perspectiva tem consequências inaceitáveis, uma vez que os contratantes com interesses próprios não obtêm nenhuma vantagem ao aceitarem princípios que oferecem garantias a indivíduos incapazes de dar qualquer garantia em retribuição, pelo que os primeiros podem ignorar os interesses daqueles que não são capazes de retribuir. Mas, se a regra de ouro “trata os outros como quererias que os outros te tratassem a ti” é substituída por aquela que podemos chamar a regra de prata, “trata os outros como eles te tratariam”, a vantagem mútua tem o efeito devastador de afastar a imparcialidade ética. Mais uma vez, demonstramos que detemos isto quando não privamos de direitos os jovens ou os desamparados ou apenas os seres humanos futuros que não podem ter deveres para connosco.
Apesar de muitas outras defesas da doutrina da superioridade humana terem sido avançadas, o apelo à pertença a uma determinada espécie, o apelo à posse de racionalidade como uma pré-condição para a moralidade, e o apelo a esta mesma característica como um meio para o acordo entre sujeitos são certamente as mais básicas defesas desta perspectiva, em torno das quais todas as outras se situam. Se nenhuma delas consegue justificar a manutenção dos animais não-humanos na sua presente condição moral inferior, parece plausível inferir que a nossa atitude actual é profundamente errada. Mas que tipo de perspectiva deve ser adoptada em vez da actual? Para responder a esta questão, muitos dos críticos da moral tradicional tendem a apelar às suas posições normativas específicas. Contudo, isto não é necessário. Temos já à nossa disposição uma teoria que, se considerada imparcialmente, pode enfrentar todas críticas anteriores. É o conjunto de princípios e juízos que recentemente têm sido reunidos sob os auspícios da doutrina universal dos direitos humanos.
No centro da teoria dos direitos humanos está a protecção dos interesses vitais – no bem-estar, na liberdade e na vida – de alguns seres. De quais, exactamente? Apesar da resposta mais comum, e aparentemente tautológica, ser “dos seres humanos”, esta afirmação é, como já vimos, inaceitável pelo facto de que a discriminação com base na espécie é análoga às formas de discriminação que a mesma doutrina condena no sexismo e no racismo. Ao contrário dos autores dos manifestos políticos, os filósofos que analisam esta questão parecem estar cientes deste problema, e, quando chamados a pronunciar-se sobre isso, a referência à espécie é introduzida de forma apressada e indirecta. O que pode, então, explicar o porquê dos direitos humanos – de dizer o que é que, nos seres humanos, justifica a atribuição de uma igual protecção fundamental?
Entre as soluções avançadas, a mais defensável parece ser aquela que é apresentada pela linha de raciocínio que apareceu no início da década de 60, culminando na elaboração apresentada pelo filósofo americano Alan Gewirth. De acordo com esta linha de raciocínio, o critério para o acesso à protecção que os direitos humanos oferecem assenta apenas em ser-se um agente – um ser com intenções que se preocupa com os seus objectivos e que os quer atingir. Todos os seres com intenções caracterizam-se pela capacidade de desfrutar da liberdade e do bem-estar (e da vida, que é a pré-condição para estes dois bens), quer directamente, quer como pré-requisitos para a acção; e, para todos estes seres, o valor intrínseco do seu desfrute é o mesmo.
Para escolher um critério em vez da intencionalidade, qualquer outra característica – seja a racionalidade ou qualquer outra entre as capacidades cognitivas tradicionalmente vistas como “superiores” – seria arbitrária, uma vez que excluiria da consideração interesses que são relevantemente semelhantes até ao ponto em que são igualmente vitais para os seus portadores.
Uma vez apresentada, esta resposta – que tem, entre outros aspectos, o efeito importante de barrar o caminho a desacreditadas perspectivas perfeccionistas do mundo - parece óbvia. E, ainda assim, envolve uma consequência que não é igualmente óbvia: com base na própria doutrina que os estabelece, os direitos humanos não são apenas humanos. A aceitação implícita da ideia de que a pertença a uma determinada espécie não é moralmente relevante não só elimina da teoria qualquer referência estrutural à posse de um genótipo Homo Sapiens, mas a obrigação de garantir direitos fundamentais iguais a todos os seres humanos, incluindo os não-racionais, implica que o critério para a atribuição de tais direitos deve situar-se num nível cognitivo acessível a uma grande quantidade de animais não-humanos.
O que poderá significar alargar a atribuição de direitos fundamentais para além das fronteiras da nossa espécie? A propósito disto, deve notar-se que duas características fundamentais definem a classe particular de direitos morais a que chamamos direitos humanos. Por um lado, apesar das tentativas para incorporar na doutrina alguns direitos positivos, ou direitos à assistência, os direitos humanos continuam a ser fundamentalmente direitos negativos, ou direitos à não-interferência. Por outro lado, desde que os direitos humanos se apresentaram como uma resposta às formas de violência e discriminação institucionalizadas que marcaram a primeira metade do século XX, o modelo, quer da sua implementação, quer da sua violação, é baseado na organização e na acção do estado.
Reconsideremos portanto a situação presente em face destes aspectos. Biliões de animais que preenchem o requisito da intencionalidade são feridos, aprisionados e mortos na prossecução de objectivos humanos. Mas a inflicção destes ferimentos, o aprisionamento e a morte destes animais são apenas o oposto da protecção da interferência institucional que a teoria dos direitos humanos procura garantir. Consequentemente, uma implementação justa desta teoria requereria mudanças legais que implicariam que os animais em causa passassem da condição de objectos para a condição de sujeitos de direito, bem como uma proibição geral das práticas de exploração que são tornadas possíveis pelo seu presente estatuto.
Assim, parece que, longe de estarem no fim de uma pirâmide moral no topo da qual nos mantemos com segurança, (a maioria) dos não-humanos põe-nos perante a força de uma exigência ética justificada. Por muito deslocada que possa parecer da nossa realidade do dia-a-dia, esta conclusão talvez não surpreenda aqueles de nós que vêem o progresso moral como a história da substituição das visões hierárquicas por princípios a favor da igualdade.
Paola Cavalieri
Editora do Jornal de Filosofia “Etica & Animali” e Co-Editora do The Great Ape Project: Equality beyond Humanity
Tradução de Miguel Moutinho, do original “Rethinking Animals”, retirado de “The Philosopher´s Magazine” Ethics Portal, em www.philosophers.co.uk/ethics.php.
Fonte - CEDA – Centro de Ética e Direito dos Animais
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Nos anos mais recentes, os animais não-humanos têm estado no centro de um intenso debate filosófico. Mais concretamente, muitos autores criticaram a moral tradicional, defendendo que o modo como nós tratamos os membros de outras espécies é eticamente indefensável. Usualmente, usamos animais como meios para os nossos fins – na verdade, tratamo-los de maneiras que consideraríamos profundamente imorais se fossem destinadas aos seres humanos. Apesar dos animais serem “pacientes morais” – isto é, seres cujo tratamento pode estar sujeito a uma avaliação moral –, o seu estatuto é infinitamente inferior ao nosso. Será que esta duplicidade de padrões está garantida? E, se está, em que base assenta?
Apesar de não ser completamente ignorada pelos filósofos, a primeira justificação oferecida é forte e está bem espalhada a nível da sociedade, sobretudo devido à sua simplicidade. À questão a respeito do que nos separa dos outros animais, a resposta é: o facto de eles não serem humanos. Nesta perspectiva, aquilo que é significativamente diferente é a posse, ou falta, de um genótipo característico da espécie Homo Sapiens. Será que esta é uma boa resposta? Não. Aqueles que apelam ao facto de se pertencer a uma espécie trabalham dentro do quadro do paradigma do igualitarismo entre humanos. E é justamente a linha de raciocínio que sustenta a igualdade entre humanos que, ao rejeitar a relevância moral da pertença a uma raça ou a um sexo, implica também a rejeição da ideia de que a pertença a uma determinada espécie seja em si mesma instituinte de uma diferença significativa quanto ao estatuto moral de um ser. Se alguém afirma que as características biológicas como a raça e o sexo não têm relevância ética, como pode então atribuir relevância a uma outra característica biológica, como a pertença a uma espécie? As perspectivas morais que aceitam o “especismo” – a ideia que defende a atribuição aos membros da nossa própria espécie um estatuto moral especial - ao mesmo tempo que rejeitam o racismo e o sexismo são internamente inconsistentes.
O especismo absoluto dificilmente poderá ser plausível. Mas há maneiras mais sofisticadas de defender a nossa presente duplicidade de padrões às quais os defensores teóricos do status quo tendem a recorrer. Para a maioria dos filósofos, não é a pertença a uma determinada espécie, mas a racionalidade que tem uma relevância central. Podemos admitir, a bem do argumento, a presunção (questionável) de que a racionalidade é um privilégio humano para nos podermos concentrar na importância moral da racionalidade.
Um argumento muito conhecido, que remonta pelo menos a Kant, depende da ideia de que os seres racionais são a condição para a existência da moralidade. As normas éticas dirigem-se a um tipo concreto de seres – os agentes morais. Os agentes morais são os seres racionais cujo comportamento pode ser submetido à avaliação moral. Se os agentes morais não existissem, não poderia haver normas éticas. Consequentemente, a ética é essencialmente um assunto que diz respeito aos agentes morais. Não obstante a sua plausibilidade superficial, este argumento baseia-se num mal-entendido. A sua conclusão consegue-se pela passagem da ideia de que apenas os seres racionais podem ser moralmente responsáveis para a ideia de que apenas o que é feito a seres racionais tem importância moral (total). Mas o como, isto é, a possibilidade da moralidade, é uma coisa; o quê, isto é, o objectivo da moralidade, é outra. Reconhecer que os agentes morais tornam a moralidade possível não significa que eles sejam os únicos pacientes morais (totais). Podemos ver que na verdade não defendemos esta perspectiva se atendermos ao facto de não pensarmos que as crianças pequenas, ou os indivíduos intelectualmente diminuídos, por não poderem agir de acordo com normas éticas, não devem ter um estatuto moral especial.
Há uma segunda versão mais radicalmente exclusivista do apelo à racionalidade, e que atribui um valor instrumental a esta característica. A noção central é que a introdução de um ser ou de um grupo de seres na comunidade moral pode ser justificada através de um tipo de acordo. Dado que para cumprir o acordo é preciso ser-se racional, o acordo incluirá apenas seres racionais, que serão os únicos pacientes morais. À luz desta ideia, as normais morais são as normas que indivíduos racionais com interesses próprios aceitariam cumprir, mediante a condição dos outros procederem exactamente da mesma maneira. Se o argumento anterior sugere a posição contemporânea de John Rawls, também lhe reconhecemos a ideia das vantagens mútuas do contratualismo de origem Hobbesiana. Mas esta perspectiva tem consequências inaceitáveis, uma vez que os contratantes com interesses próprios não obtêm nenhuma vantagem ao aceitarem princípios que oferecem garantias a indivíduos incapazes de dar qualquer garantia em retribuição, pelo que os primeiros podem ignorar os interesses daqueles que não são capazes de retribuir. Mas, se a regra de ouro “trata os outros como quererias que os outros te tratassem a ti” é substituída por aquela que podemos chamar a regra de prata, “trata os outros como eles te tratariam”, a vantagem mútua tem o efeito devastador de afastar a imparcialidade ética. Mais uma vez, demonstramos que detemos isto quando não privamos de direitos os jovens ou os desamparados ou apenas os seres humanos futuros que não podem ter deveres para connosco.
Apesar de muitas outras defesas da doutrina da superioridade humana terem sido avançadas, o apelo à pertença a uma determinada espécie, o apelo à posse de racionalidade como uma pré-condição para a moralidade, e o apelo a esta mesma característica como um meio para o acordo entre sujeitos são certamente as mais básicas defesas desta perspectiva, em torno das quais todas as outras se situam. Se nenhuma delas consegue justificar a manutenção dos animais não-humanos na sua presente condição moral inferior, parece plausível inferir que a nossa atitude actual é profundamente errada. Mas que tipo de perspectiva deve ser adoptada em vez da actual? Para responder a esta questão, muitos dos críticos da moral tradicional tendem a apelar às suas posições normativas específicas. Contudo, isto não é necessário. Temos já à nossa disposição uma teoria que, se considerada imparcialmente, pode enfrentar todas críticas anteriores. É o conjunto de princípios e juízos que recentemente têm sido reunidos sob os auspícios da doutrina universal dos direitos humanos.
No centro da teoria dos direitos humanos está a protecção dos interesses vitais – no bem-estar, na liberdade e na vida – de alguns seres. De quais, exactamente? Apesar da resposta mais comum, e aparentemente tautológica, ser “dos seres humanos”, esta afirmação é, como já vimos, inaceitável pelo facto de que a discriminação com base na espécie é análoga às formas de discriminação que a mesma doutrina condena no sexismo e no racismo. Ao contrário dos autores dos manifestos políticos, os filósofos que analisam esta questão parecem estar cientes deste problema, e, quando chamados a pronunciar-se sobre isso, a referência à espécie é introduzida de forma apressada e indirecta. O que pode, então, explicar o porquê dos direitos humanos – de dizer o que é que, nos seres humanos, justifica a atribuição de uma igual protecção fundamental?
Entre as soluções avançadas, a mais defensável parece ser aquela que é apresentada pela linha de raciocínio que apareceu no início da década de 60, culminando na elaboração apresentada pelo filósofo americano Alan Gewirth. De acordo com esta linha de raciocínio, o critério para o acesso à protecção que os direitos humanos oferecem assenta apenas em ser-se um agente – um ser com intenções que se preocupa com os seus objectivos e que os quer atingir. Todos os seres com intenções caracterizam-se pela capacidade de desfrutar da liberdade e do bem-estar (e da vida, que é a pré-condição para estes dois bens), quer directamente, quer como pré-requisitos para a acção; e, para todos estes seres, o valor intrínseco do seu desfrute é o mesmo.
Para escolher um critério em vez da intencionalidade, qualquer outra característica – seja a racionalidade ou qualquer outra entre as capacidades cognitivas tradicionalmente vistas como “superiores” – seria arbitrária, uma vez que excluiria da consideração interesses que são relevantemente semelhantes até ao ponto em que são igualmente vitais para os seus portadores.
Uma vez apresentada, esta resposta – que tem, entre outros aspectos, o efeito importante de barrar o caminho a desacreditadas perspectivas perfeccionistas do mundo - parece óbvia. E, ainda assim, envolve uma consequência que não é igualmente óbvia: com base na própria doutrina que os estabelece, os direitos humanos não são apenas humanos. A aceitação implícita da ideia de que a pertença a uma determinada espécie não é moralmente relevante não só elimina da teoria qualquer referência estrutural à posse de um genótipo Homo Sapiens, mas a obrigação de garantir direitos fundamentais iguais a todos os seres humanos, incluindo os não-racionais, implica que o critério para a atribuição de tais direitos deve situar-se num nível cognitivo acessível a uma grande quantidade de animais não-humanos.
O que poderá significar alargar a atribuição de direitos fundamentais para além das fronteiras da nossa espécie? A propósito disto, deve notar-se que duas características fundamentais definem a classe particular de direitos morais a que chamamos direitos humanos. Por um lado, apesar das tentativas para incorporar na doutrina alguns direitos positivos, ou direitos à assistência, os direitos humanos continuam a ser fundamentalmente direitos negativos, ou direitos à não-interferência. Por outro lado, desde que os direitos humanos se apresentaram como uma resposta às formas de violência e discriminação institucionalizadas que marcaram a primeira metade do século XX, o modelo, quer da sua implementação, quer da sua violação, é baseado na organização e na acção do estado.
Reconsideremos portanto a situação presente em face destes aspectos. Biliões de animais que preenchem o requisito da intencionalidade são feridos, aprisionados e mortos na prossecução de objectivos humanos. Mas a inflicção destes ferimentos, o aprisionamento e a morte destes animais são apenas o oposto da protecção da interferência institucional que a teoria dos direitos humanos procura garantir. Consequentemente, uma implementação justa desta teoria requereria mudanças legais que implicariam que os animais em causa passassem da condição de objectos para a condição de sujeitos de direito, bem como uma proibição geral das práticas de exploração que são tornadas possíveis pelo seu presente estatuto.
Assim, parece que, longe de estarem no fim de uma pirâmide moral no topo da qual nos mantemos com segurança, (a maioria) dos não-humanos põe-nos perante a força de uma exigência ética justificada. Por muito deslocada que possa parecer da nossa realidade do dia-a-dia, esta conclusão talvez não surpreenda aqueles de nós que vêem o progresso moral como a história da substituição das visões hierárquicas por princípios a favor da igualdade.
Paola Cavalieri
Editora do Jornal de Filosofia “Etica & Animali” e Co-Editora do The Great Ape Project: Equality beyond Humanity
Tradução de Miguel Moutinho, do original “Rethinking Animals”, retirado de “The Philosopher´s Magazine” Ethics Portal, em www.philosophers.co.uk/ethics.php.
Fonte - CEDA – Centro de Ética e Direito dos Animais
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