11 janeiro 2011

Repensar os animais - Paola Cavalieri

Pela primera vez, vou publicar um texto que não é meu. Eu gostaria muito que fosse. Segue.
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Nos anos mais recentes, os animais não-humanos têm estado no centro de um intenso debate filosófico. Mais concretamente, muitos autores criticaram a moral tradicional, defendendo que o modo como nós tratamos os membros de outras espécies é eticamente indefensável. Usualmente, usamos animais como meios para os nossos fins – na verdade, tratamo-los de maneiras que consideraríamos profundamente imorais se fossem destinadas aos seres humanos. Apesar dos animais serem “pacientes morais” – isto é, seres cujo tratamento pode estar sujeito a uma avaliação moral –, o seu estatuto é infinitamente inferior ao nosso. Será que esta duplicidade de padrões está garantida? E, se está, em que base assenta?

Apesar de não ser completamente ignorada pelos filósofos, a primeira justificação oferecida é forte e está bem espalhada a nível da sociedade, sobretudo devido à sua simplicidade. À questão a respeito do que nos separa dos outros animais, a resposta é: o facto de eles não serem humanos. Nesta perspectiva, aquilo que é significativamente diferente é a posse, ou falta, de um genótipo característico da espécie Homo Sapiens. Será que esta é uma boa resposta? Não. Aqueles que apelam ao facto de se pertencer a uma espécie trabalham dentro do quadro do paradigma do igualitarismo entre humanos. E é justamente a linha de raciocínio que sustenta a igualdade entre humanos que, ao rejeitar a relevância moral da pertença a uma raça ou a um sexo, implica também a rejeição da ideia de que a pertença a uma determinada espécie seja em si mesma instituinte de uma diferença significativa quanto ao estatuto moral de um ser. Se alguém afirma que as características biológicas como a raça e o sexo não têm relevância ética, como pode então atribuir relevância a uma outra característica biológica, como a pertença a uma espécie? As perspectivas morais que aceitam o “especismo” – a ideia que defende a atribuição aos membros da nossa própria espécie um estatuto moral especial - ao mesmo tempo que rejeitam o racismo e o sexismo são internamente inconsistentes.

O especismo absoluto dificilmente poderá ser plausível. Mas há maneiras mais sofisticadas de defender a nossa presente duplicidade de padrões às quais os defensores teóricos do status quo tendem a recorrer. Para a maioria dos filósofos, não é a pertença a uma determinada espécie, mas a racionalidade que tem uma relevância central. Podemos admitir, a bem do argumento, a presunção (questionável) de que a racionalidade é um privilégio humano para nos podermos concentrar na importância moral da racionalidade.

Um argumento muito conhecido, que remonta pelo menos a Kant, depende da ideia de que os seres racionais são a condição para a existência da moralidade. As normas éticas dirigem-se a um tipo concreto de seres – os agentes morais. Os agentes morais são os seres racionais cujo comportamento pode ser submetido à avaliação moral. Se os agentes morais não existissem, não poderia haver normas éticas. Consequentemente, a ética é essencialmente um assunto que diz respeito aos agentes morais. Não obstante a sua plausibilidade superficial, este argumento baseia-se num mal-entendido. A sua conclusão consegue-se pela passagem da ideia de que apenas os seres racionais podem ser moralmente responsáveis para a ideia de que apenas o que é feito a seres racionais tem importância moral (total). Mas o como, isto é, a possibilidade da moralidade, é uma coisa; o quê, isto é, o objectivo da moralidade, é outra. Reconhecer que os agentes morais tornam a moralidade possível não significa que eles sejam os únicos pacientes morais (totais). Podemos ver que na verdade não defendemos esta perspectiva se atendermos ao facto de não pensarmos que as crianças pequenas, ou os indivíduos intelectualmente diminuídos, por não poderem agir de acordo com normas éticas, não devem ter um estatuto moral especial.

Há uma segunda versão mais radicalmente exclusivista do apelo à racionalidade, e que atribui um valor instrumental a esta característica. A noção central é que a introdução de um ser ou de um grupo de seres na comunidade moral pode ser justificada através de um tipo de acordo. Dado que para cumprir o acordo é preciso ser-se racional, o acordo incluirá apenas seres racionais, que serão os únicos pacientes morais. À luz desta ideia, as normais morais são as normas que indivíduos racionais com interesses próprios aceitariam cumprir, mediante a condição dos outros procederem exactamente da mesma maneira. Se o argumento anterior sugere a posição contemporânea de John Rawls, também lhe reconhecemos a ideia das vantagens mútuas do contratualismo de origem Hobbesiana. Mas esta perspectiva tem consequências inaceitáveis, uma vez que os contratantes com interesses próprios não obtêm nenhuma vantagem ao aceitarem princípios que oferecem garantias a indivíduos incapazes de dar qualquer garantia em retribuição, pelo que os primeiros podem ignorar os interesses daqueles que não são capazes de retribuir. Mas, se a regra de ouro “trata os outros como quererias que os outros te tratassem a ti” é substituída por aquela que podemos chamar a regra de prata, “trata os outros como eles te tratariam”, a vantagem mútua tem o efeito devastador de afastar a imparcialidade ética. Mais uma vez, demonstramos que detemos isto quando não privamos de direitos os jovens ou os desamparados ou apenas os seres humanos futuros que não podem ter deveres para connosco.

Apesar de muitas outras defesas da doutrina da superioridade humana terem sido avançadas, o apelo à pertença a uma determinada espécie, o apelo à posse de racionalidade como uma pré-condição para a moralidade, e o apelo a esta mesma característica como um meio para o acordo entre sujeitos são certamente as mais básicas defesas desta perspectiva, em torno das quais todas as outras se situam. Se nenhuma delas consegue justificar a manutenção dos animais não-humanos na sua presente condição moral inferior, parece plausível inferir que a nossa atitude actual é profundamente errada. Mas que tipo de perspectiva deve ser adoptada em vez da actual? Para responder a esta questão, muitos dos críticos da moral tradicional tendem a apelar às suas posições normativas específicas. Contudo, isto não é necessário. Temos já à nossa disposição uma teoria que, se considerada imparcialmente, pode enfrentar todas críticas anteriores. É o conjunto de princípios e juízos que recentemente têm sido reunidos sob os auspícios da doutrina universal dos direitos humanos.

No centro da teoria dos direitos humanos está a protecção dos interesses vitais – no bem-estar, na liberdade e na vida – de alguns seres. De quais, exactamente? Apesar da resposta mais comum, e aparentemente tautológica, ser “dos seres humanos”, esta afirmação é, como já vimos, inaceitável pelo facto de que a discriminação com base na espécie é análoga às formas de discriminação que a mesma doutrina condena no sexismo e no racismo. Ao contrário dos autores dos manifestos políticos, os filósofos que analisam esta questão parecem estar cientes deste problema, e, quando chamados a pronunciar-se sobre isso, a referência à espécie é introduzida de forma apressada e indirecta. O que pode, então, explicar o porquê dos direitos humanos – de dizer o que é que, nos seres humanos, justifica a atribuição de uma igual protecção fundamental?

Entre as soluções avançadas, a mais defensável parece ser aquela que é apresentada pela linha de raciocínio que apareceu no início da década de 60, culminando na elaboração apresentada pelo filósofo americano Alan Gewirth. De acordo com esta linha de raciocínio, o critério para o acesso à protecção que os direitos humanos oferecem assenta apenas em ser-se um agente – um ser com intenções que se preocupa com os seus objectivos e que os quer atingir. Todos os seres com intenções caracterizam-se pela capacidade de desfrutar da liberdade e do bem-estar (e da vida, que é a pré-condição para estes dois bens), quer directamente, quer como pré-requisitos para a acção; e, para todos estes seres, o valor intrínseco do seu desfrute é o mesmo.


Para escolher um critério em vez da intencionalidade, qualquer outra característica – seja a racionalidade ou qualquer outra entre as capacidades cognitivas tradicionalmente vistas como “superiores” – seria arbitrária, uma vez que excluiria da consideração interesses que são relevantemente semelhantes até ao ponto em que são igualmente vitais para os seus portadores.

Uma vez apresentada, esta resposta – que tem, entre outros aspectos, o efeito importante de barrar o caminho a desacreditadas perspectivas perfeccionistas do mundo - parece óbvia. E, ainda assim, envolve uma consequência que não é igualmente óbvia: com base na própria doutrina que os estabelece, os direitos humanos não são apenas humanos. A aceitação implícita da ideia de que a pertença a uma determinada espécie não é moralmente relevante não só elimina da teoria qualquer referência estrutural à posse de um genótipo Homo Sapiens, mas a obrigação de garantir direitos fundamentais iguais a todos os seres humanos, incluindo os não-racionais, implica que o critério para a atribuição de tais direitos deve situar-se num nível cognitivo acessível a uma grande quantidade de animais não-humanos.

O que poderá significar alargar a atribuição de direitos fundamentais para além das fronteiras da nossa espécie? A propósito disto, deve notar-se que duas características fundamentais definem a classe particular de direitos morais a que chamamos direitos humanos. Por um lado, apesar das tentativas para incorporar na doutrina alguns direitos positivos, ou direitos à assistência, os direitos humanos continuam a ser fundamentalmente direitos negativos, ou direitos à não-interferência. Por outro lado, desde que os direitos humanos se apresentaram como uma resposta às formas de violência e discriminação institucionalizadas que marcaram a primeira metade do século XX, o modelo, quer da sua implementação, quer da sua violação, é baseado na organização e na acção do estado.

Reconsideremos portanto a situação presente em face destes aspectos. Biliões de animais que preenchem o requisito da intencionalidade são feridos, aprisionados e mortos na prossecução de objectivos humanos. Mas a inflicção destes ferimentos, o aprisionamento e a morte destes animais são apenas o oposto da protecção da interferência institucional que a teoria dos direitos humanos procura garantir. Consequentemente, uma implementação justa desta teoria requereria mudanças legais que implicariam que os animais em causa passassem da condição de objectos para a condição de sujeitos de direito, bem como uma proibição geral das práticas de exploração que são tornadas possíveis pelo seu presente estatuto.

Assim, parece que, longe de estarem no fim de uma pirâmide moral no topo da qual nos mantemos com segurança, (a maioria) dos não-humanos põe-nos perante a força de uma exigência ética justificada. Por muito deslocada que possa parecer da nossa realidade do dia-a-dia, esta conclusão talvez não surpreenda aqueles de nós que vêem o progresso moral como a história da substituição das visões hierárquicas por princípios a favor da igualdade.

Paola Cavalieri
Editora do Jornal de Filosofia “Etica & Animali” e Co-Editora do The Great Ape Project: Equality beyond Humanity

Tradução de Miguel Moutinho, do original “Rethinking Animals”, retirado de “The Philosopher´s Magazine” Ethics Portal, em www.philosophers.co.uk/ethics.php.

Fonte - CEDA – Centro de Ética e Direito dos Animais